Apesar de não dizer respeito ao Indomável diretamente, esta história justifica minha ausência no ano que passou...
Tudo começou quando resolvemos comprar um veleirinho com o qual pudéssemos participar das poucas regatas promovidas pelo pessoal aqui do Paraná, o que nos propiciaria algumas pausas na construção, ao mesmo tempo em que eu aprimoraria meus conhecimentos de navegação e a Almiranta aumentaria sua intimidade com o Mar, preparando-nos assim para quando o Indomável for para a água.
Nossa busca culminou na compra do Equetos, um Brasília 25, cujo traslado desde Ubatuba, no litoral norte de São Paulo, rendeu-me a maior aventura que eu jamais imaginara viver...
Este fato, que aconteceu há um ano, marca o fim da história do Equetos e a origem do Avatar. Não publicarei este relato no próprio site do Avatar em sinal de respeito ao meu amigão, que soube perdoar minha inexperiência de navegante. Enfrentando sozinho a encrenca em que o meti, envolveu-me em seu abraço seguro e me entregou são e salvo à terra firme; devo minha sobrevivência a esse valente barquinho, e disso jamais me olvidarei.
A aventura que quase virou tragédia
No dia 08/01/2011 fiz minha estréia como velejador solitário, fazendo o traslado de nosso, à época, recém adquirido veleiro desde Ubatuba-SP até Antonina-PR.
A título de esclarecimento, e para que se entenda certos acontecimentos que virão, cabe aqui registrar alguns detalhes do barco e da viagem programada.
Vou pular a parte boa da viagem, desde a partida do Saco da Ribeira em Ubatuba (Onde tive a oportunidade de conhecer pessoalmente o Fábio, que até então só conhecia virtualmente, através dos grupos náuticos da internet, ver parte do belo trabalho que ele realiza por lá, e ainda dar uma velejada com direito a uma aula gratuita de trimagem de balão. Impressionante como a internet pode enganar; quem só o conhece aqui pela net, jamais irá supor o grande cara, super anfitrião que ele é. Valeu, Fabião!!); e daí passando pela Ilha do Mar Virado, Ilha Bela, Toque-Toque, Montão de Trigo, Ilha da Moela, até a atracação no Iate Clube de Santos, de cujas belas instalações fiz muito bom uso, e onde fui muito bem recebido.
Dias ensolarados, chuva no final da tarde, pôr-do-sol cinematográfico, noites tranqüilas de sono, dormindo ancorado, embalado pelo balanço do mar, muitos peixes pelo caminho, água com infinitas nuances e tons entre o verde e o azul, etc... (outro dia eu conto).
Vou direto à parte que considero importante compartilhar agora, na esperança de que o exemplo sirva de alguma forma para evitar que aqueles que venham a ler este relato passem pelo mesmo sufoco. Críticas à parte, e elas sempre vêm, as lições principais já na ocasião as tomei sozinho.
Dia 10/01, o dia que jamais sairá da minha memória.
Levantei-me às 6:30h como de costume, fiz meu café e saí para a rua para me abastecer de gasolina, água e gelo...Fui para a rua para não ter que esperar o horário do clube, onde tudo começa a funcionar somente às 8:00h.
Tudo pronto, procurei pela previsão do tempo na portaria, onde fui instruído a buscar a informação na sala de radio, mas também só após as 8:00h... Resolvi então zarpar para ganhar tempo e pegar essa informação via rádio enquanto ainda estivesse no canal do porto. Manobrei, tomei o canal, fiz contato pelo rádio e pedi a previsão do tempo e ventos para o dia; o operador pediu para aguardar um momento e não tive mais contato... Silencio. Achei que ele simplesmente tinha me ignorado (posteriormente descobri que o rádio tinha dado mau contato). Olhei em volta, via nuvens de chuva lá no planalto... No mar, céu de brigadeiro. Decidi partir assim mesmo; na noite anterior, por telefone, minha mulher já me havia informado que a previsão era de chuva no final da tarde (Como em todos os dias anteriores foi exatamente isso o que ocorreu, não me preocupei, até porque minha previsão era estar no Guaraú até as 18:00h).
Às 9:00h estava saindo do canal de Santos, rumo verdadeiro 235 (Com a declinação e o desvio, dava 258 na agulha), direto para o Guaraú... 12:00h, través de Mongaguá... Já acostumado com a rotina amena, parecia ter 6 mãos... Como o vento era sempre de sul, quase zero, ia o tempo todo no motor; amarrava o leme e descia para a cabine, preparava suco, fotografava e pilotava, tudo ao mesmo tempo.
Às 15:00h peguei chuva no través de Itanhaém... Aí começou a aventura. O vento cresceu e o mar encrespou; ao cavalgar as ondas o motor afogava a cada enterrada, até que em dado momento parou (imagino que deve ter entrado água na tomada de ar). Fiquei só com as velas. Como a velejada estava intensa, não podia me dedicar a tentar funcionar novamente o motor...
Vento sul constante, rumo sudoeste, isso dava uma orça cerrada paralela à costa, com um pequeno abatimento; no bordo oposto o rendimento era muito negativo, o que me fez insistir no bordo paralelo à costa, me aproximando assim da orla (perigosamente, como pude perceber depois). Perto das 17:00h percebi que rumava diretamente para a barra do rio Itanhaém; tentei cambar mas o barco não obedeceu... Insisti de novo, arribei um pouco, enchi as velas para ganhar potência e tentei novamente cambar; o barco negou outra vez. Aí me apavorei, estava indo diretamente para a arrebentação (depois descobri com o pessoal do Iate Clube de Itanhaém que ali existe uma contra-corrente que arrasta as embarcações que se aproximam além de um determinado ponto, diretamente para a barra). Como o vento ainda era forte, quase sem tempo hábil, tentei uma manobra arriscada (até porque não tinha outra alternativa); rapidamente enrolei a genoa e arribei aproando para a praia, perigosamente próxima, e dei um jaibe... Aos poucos o barco foi virando, inverteu o rumo, e a vela grande inflou... Que alívio! Abri a genoa que deu potência ao barco e aproei para a Laje da Conceição. Dei as costas para a terra e jurei continuar assim enquanto pudesse. Minhas pernas tremiam e meu coração quase saia pela boca.
Não sei quanto tempo durou o pesadelo, mas agora eu estava velejando um vento sul forte, genoa aberta, barco a toda velocidade rumo direto a Ilha do Guaraú, onde teria abrigo... Eu tiritava de frio, tinha verdadeiros espasmos, encharcado, congelando, e minha roupa de tempo sequinha, na embalagem dentro da cabine... Não podia largar o leme amarrado, pois naquelas condições de mar uma atravessada seria catastrófica. Estava entrando no segundo estágio da hipotermia, o que começou a afetar diretamente minhas decisões; lembro-me de ter ficado eufórico, me sentia o verdadeiro homem do mar, batizado pelo meu primeiro temporal em solitário (não tinha a menor idéia do que me aguardava)... No entanto já passava das 20:00h e eu estava apavorado com a idéia de anoitecer no mar, fundear no escuro em um lugar que eu não conhecia; amarrei uma lanterna no pulso e mantive o rumo direto com Guaraú na proa a 6 ou 7 milhas (meu erro quase fatal), mesmo vendo o paredão negro que se aproximava, este agora vindo do sul pelo oceano...
Nesta hora eu, exausto da luta com o primeiro temporal, já estava completamente fora da razão, pois ali deitado, me segurando com as duas mãos para não ser jogado para os lados, enquanto tudo voava dentro do barco destruindo as poucas coisas que ainda estavam no lugar, e lá fora o mundo desabava, eu ali, devidamente protegido pelo salva-vidas, quentinho e de roupas secas, me sentia no melhor lugar do mundo, não poderia estar mais confortável; cochilei... Dormi.
Não sei quanto tempo durou este sono reparador, acordei com o alarme da sonda... Achei que estava delirando, levantei e fui olhar, iluminei com a lanterna e vi 2,30m... 2,00m...
Abri a gaiúta e olhei para fora, a praia estava logo ali... Olhei para o outro lado, ondas arrebentando sobre mim, não tinha mais retorno. Foi o tempo de pegar a carteira, o celular, e num último gesto ligar para Lenir para avisar que teria de abandonar o barco... não tinha palavras para me desculpar pelo meu fracasso; pulei do barco. Com a arrebentação o barco foi inundado, e não me sobrou mais nada seco.
Fui acolhido na praia por pessoas de um quiosque que ainda estava aberto e que viram o barco se aproximar na arrebentação; me ofereceram café, comida e um banho quente, e depois roupas secas.
Não faço idéia da força da tempestade que me pegou, nem da velocidade de seus ventos, mas sei onde estava quando ela me alcançou entre 20:30h e 21:00h, a meio caminho entre o través de Itanhaém e a Ilha do Guaraú... E onde ela me jogou, na praia do Cibratel I, a 50m dos rochedos, às 21:30h, o que me leva a deduzir que fui arrastado numa deriva, sem velas e arrastando a ancora, de aproximadamente uns 12 ou 13 nós.
Mas, para terminar, não poderia deixar de mencionar que naquela hora em que eu estava me remoendo, repassando as lições aprendidas, principalmente a de humildade, enquanto vestia a carapuça de capitão encalhado, me lembrei do meu grande amigo e mentor Magalhães, comodoro do Iate Clube Tamoios, de Ubatuba, que do alto de sua sabedoria e experiência dissera-me dias antes: “Lá fora, quando o bicho pegar, sua carta de capitão não vai fazer nada por você”...
Valeu Maga, por mais essa; você estava certo, como sempre; lições aprendidas e devidamente catalogadas, vamos em frente... Sei que ainda riremos bastante disso, mas... Vira essa boca pra lá, meu!!!
No ano que se seguiu ao acidente, durante a restauração do barco decidimos rebatizá-lo com o nome Avatar. O barco continua o mesmo, apenas a forma como o vemos e sentimos é que mudou, agora muito mais íntima. Tomamos o encalhe como ritual de naufrágio do antigo nome, e procedemos ao ritual de batismo com o novo nome durante o relançamento, com direito a champanhe e tudo.
Eu e Lenir, minha mulher, com quem compartilho meus sonhos e anseios na vida, temos uma sintonia tão fina a ponto de juntos sermos um só, e é assim que nos tornamos a alma dessa embarcação. Ao subir a bordo, emprestamos ao veleiro nossa vida, e ele torna-se literalmente nosso avatar. Juntos os três, nos tornamos um grande ser mítico: um casal que anda sobre as águas.
Hoje dividimos nosso tempo livre entre a construção do Indomável e a manutenção do Avatar, no qual sempre tem alguma coisa a fazer; para não haver ciúmes, alterno meus finais de semana entre um e outro... Quando o Indomável for para a água, sei que terei uma dolorosa decisão a tomar... Mas, como disse o grande mestre, a cada dia seu mal.
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