Esta entrevista foi concedida ao editor Gilberto Ungaretti, via e-mail. Obviamente, eu acabei me excedendo um pouco, tendo em vista minha paixão pelo assunto; ele certamente teve algum trabalho para selecionar os pontos de maior interesse e adequar-se ao espaço disponível, como se pode ver na matéria publicada (foto ao lado)... aqui, no entanto, resolvi publicar a estória na íntegra para os amigos que estiverem com paciência para ler.
1) De onde tirou a idéia de construir um barco com as próprias mãos, e ainda por cima um veleiro de aço?
Essa é uma longa estória que tem seu início em uma pescaria às margens da represa Billings, há uns 15 anos. Sentado no barranco, enquanto alimento as tilápias, fico imaginando quão privilegiado seria eu se tivesse um barquinho que me levasse às ilhotas próximas - para mim ilhas mesmo, de verdade... Calculo que poderia contar nos dedos das mãos os felizardos que se podem dar esse luxo, e mesmo sem querer, comparo sua condição à dos pobres infelizes como eu, presos aqui do lado de fora; em meus devaneios, antevejo a magia contida no ato de pisar aquele solo, reservado a tão seleto grupo. O que eu mal suspeito é que nesse momento experimento apenas os primeiros sintomas de uma febre, que no decorrer do tempo só aumentará, e da qual jamais virei a me curar.
Nesse ponto a idéia de construir um barco não passa de um embrião... Sempre soube que barco é coisa de rico; nascido em família simples da periferia, só vi alguns poucos de perto, toquei em quase nenhum, e sequer imaginei estar a bordo de um deles. Os nomes, conheço de ouvir falar: saveiro, escuna, iole, iate... Não faço a menor idéia de como deva ser cada um desses até então completos estranhos, mas que em muito breve se tornarão quase uma obcessão em minha vida.
Como neste mundo nada é absoluto, bem e mal são apenas pontos de vista... Com a pobreza vem de brinde a capacidade de superar obstáculos. Desde muito cedo aprendi a fazer com as próprias mãos tudo o que eu necessitasse, mas que não pudesse comprar. Infeliz ou felizmente essa questão do dinheiro tornou-se um paradigma em minha vida, já que eu acabei desenvolvendo em mim essa capacidade de realizar meus desejos sem a necessidade dos recursos financeiros equivalentes. Passei a classificar as coisas como no máximo, relativamente difícil... Impossível é apenas algo que ainda não foi tentado da forma adequada.
À medida que a idéia do barco toma forma em minha mente, vou devorando tudo que encontro pelo caminho que trate do assunto; preciso aprender o nome de cada barco, o nome de cada parte desses barcos, o material de que é feita cada uma dessas partes, onde consigo cada um desses materiais. Minha sede de saber a respeito desse maravilhoso mundo é cada vez maior. Reviro bancas de revistas e sebos atrás de revistas e livros náuticos, começo a me familiarizar com termos, linhas e formas, leio relatos que ampliam meus horizontes, e tudo parece ter uma verdade subliminar embutida, um sinal vindo como que do além; a primeira revista náutica que leio, usada e meio antiga, fala do primeiro brasileiro a fazer a circunavegação em solitário, e de como ele construiu seu veleiro no quintal de casa; o primeiro livro que leio, igualmente usado, fala de um brasileiro que atravessou o Atlântico sul a remo... Foram meus primeiros ídolos do meio náutico... Mas, foram apenas os primeiros, de inúmeros que eu ainda viria a descobrir.
Nomes que eu nunca ouvira antes, passaram a me soar familiares tais como Slocum, Moitessier, Tabarly, Blake, Dumas, Bardiaux... Os nomes de brasileiros acho mais prudente não citar, a fim de não arranhar vaidades. No entanto, cabe aqui uma exceção: o único com quem cheguei posteriormente a me corresponder, e desenvolver o que me atrevo a chamar de amizade apesar de não o ter conhecido pessoalmente, por enquanto, o que não o impediu de me dar valiosos conselhos, e me repassar preciosas lições. Uma delas – talvez a mais cara – a de que todos esses meus ídolos são ou foram, na verdade, de carne e ossos como eu, e se eles têm algo de excepcional, talvez seja apenas sua vontade e determinação; assim, seja o que for que eles puderam, eu posso também, bastando para isso querer... Pela lição de humildade, meu respeito e gratidão a esse grande capitão que já está em sua segunda volta ao mundo com o veleiro Guardian, meu amigo, ou como ele prefere, “mano” João Sombra.
Após 10 anos, aprendendo tudo que podia, praticando minhas habilidades manuais em barcos menores já construí dois pequenos veleiros, o primeiro, experimental, feito com madeirit desses de construção civil, impregnado com resina e reforçado com fibra, me serviu para confirmar a funcionalidade dos meus desenhos; o segundo, aperfeiçoado, foi construído com lambris de madeira, desses usados em forro de teto; envernizado, ficou lindo! Pena que não fiz nenhuma foto dele que foi minha obra-prima.
Hoje as ilhas da Billings e Guarapiranga já foram devidamente exploradas, são passado... Até “furacão” de 50/60 nós eu já peguei na represa Jurumirim, em Avaré – SP, desses de estourar vela e arrancar mastro... Mas quanto mais a gente sobe, mais longe fica o horizonte... Não tem jeito, eu preciso avançar. As dezenas de livros que li, e as mais de 300 revistas que colecionei nesse tempo, mudaram as ilhas dos meus sonhos; hoje sonho com Trindade, Noronha, São Pedro... 3 Km de água doce não são mais uma travessia; hoje sonho em ver de perto os fiordes da costa chilena... Atravessar o Horn para poder colocar uma argola de ouro na orelha esquerda; o pequeno veleirinho de madeira não é mais desafio... Quero fazer um barco que mereça ser entregue em batismo à proteção de Poseidon... A bordo do qual eu possa oferecer um sacrifício pelo bordo certo para que não seja confundido com lixo, a fim de obter o consentimento de Netuno para passear por seu reino... Sob cujo mastro possa colocar uma moeda de 1 ore norueguês, simbolizando o valor dos ventos com que Éolo me há de brindar.
Eis a origem e a gênese do sonho. Daí saiu a idéia de construir com as próprias mãos o veleiro que tem sido a obra, e que será o palco da aventura de minha vida. Escorpiniano que sou, meu elemento é a terra... Nem mesmo entendo esse fascínio que a água exerce sobre mim... Sei que sou apaixonado e me entrego de corpo e alma a essa paixão... Mas sou também inteligente, cauteloso e exigente no que se refere à minha segurança, e faço questão que a aventura perdure, daí a necessidade de ser um barco sólido e seguro... Firme e forte como aço.
No início, a idéia era construir o barco em compensado naval, e revesti-lo com fibra de vidro e resina; na verdade, eu queria o método mais barato possível; ocorreu que na hora de fazer a planilha de custos, verifiquei que teria um gasto considerável com o revestimento, e resolvi calcular também em aço... E achei um custo só um pouco maior que o original (R$1000,00 para ser preciso); como nesse caso eu gastaria bem menos tempo na construção, e teria a possibilidade de dispensar a necessidade do barracão, acabou ficando mais barato... E de quebra eu teria praticamente um blindado para minha aventura.
É claro que o fato de eu trabalhar como serralheiro há 25 anos e entender de cálculo estrutural ajuda, mas até nisso pode estar a mão do destino me dando um empurrão mesmo antes de eu imaginar o que me aguardava... Seja o que Deus quiser!
2) Qual é o tamanho do veleiro? Como é a sua divisão interna?
O barco tem 8,84m de comprimento (29 pés), 3,00m de boca máxima, 1,12m de calado, e pesará vazio 3.200 Kg. O Layout interno segue o padrão adotado pelos multichines desta faixa, projetados pelo já consagrado Cabinho, devidamente adaptado às medidas e prioridades por mim estabelecidas: cama de casal em “V” na proa, com reservatório de água doce para 300 litros; mesa rebatível no centro, com um sofá em cada lado, sendo o de boreste conversível em beliche de solteiro, e usado também como assento de trabalho da mesa de navegação anexa à antepara do banheiro; banheiro à meia-nau por boreste, com pé direito de 1,80m, permitindo um banho em pé, com água aquecida por um sistema ligado ao escapamento do motor, banheiro este comparável aos de barcos bem maiores, e com acesso ao compartimento de popa onde estará instalado o tanque de combustível de 120 litros, e um depósito de ferramentas e peças de manutenção; cozinha em “L” à meia-nau por bombordo, com fogão em suspensão cardan, com duas bocas e forno, geladeira, e pia abastecida com água doce e salgada; acesso pela cozinha à cabine de popa, com cama de casal e espaço para guardar roupas e objetos pessoais; banco de baterias de 300AH sob o piso do salão principal; motor de centro de 22HP sob a escada de acesso da cabine; cockpitt com dois paióis independentes, isolados entre si e do interior do barco, para guarda de velas e cabos, e instalação do botijão de gás; plataforma de popa com piso a 5cm da água, permitindo o embarque mesmo sem a escadinha de acesso estar abaixada.
Foi concebido para ser o menor barco que eu pudesse construir, mas que permitisse uma travessia oceânica com um casal a bordo, segura e confortavelmente.
3) Quando começou a construção? Vai ficar pronto em quanto tempo?
Comecei a cortar a primeira peça no dia 21 de outubro de 2006; meu projeto prevê 500 horas trabalhadas só no casco (até o momento confirmadas); depois vem o acabamento interno, do qual não tenho uma estimativa precisa de tempo, mas que pretendo concluir, juntamente com a instalação dos demais equipamentos em aproximadamente um ano e meio após a pintura do casco. Cumprindo esse cronograma, minha expectativa é estar com ele na água até o final de 2009.
4) Quanto custou?
Essa é a parte delicada do negócio... Até existem pessoas que me consideram louco por acharem que estou construindo um cofre de aço para me jogar com ele no mar (ainda mais depois que, no filme Titanic, o engenheiro que projetou o navio disparou a célebre frase: “é feito de ferro, e eu posso garantir que afunda”); para essas pessoas, os termos “câmara estanque” e “flutuabilidade positiva” não dizem absolutamente nada... Apenas meneiam a cabeça e saem de fininho, em silêncio e sem movimentos bruscos, como quem diz: “gente assim, é melhor não contrariar”. Mas quando converso com pessoas entendidas no assunto, e a conversa toca nesse ponto (custo), é que fico com a impressão de que os olhares inquietos estão à procura da camisa de força, e as mãos para trás escondem seringas com sedativos...
Todos sabemos que no Brasil, o mundo náutico ainda é em geral, coisa de elite. Trata-se de um universo nobre, cercado de glamour, reservado a poucos privilegiados e excepcionalmente, um ou outro teimoso/apaixonado. A maioria dos consumidores desse meio não sabe o que é comprar um carro usado, e sequer concebe a idéia de um brexó, onde algo que parece não ter mais serventia e seria naturalmente descartado, é avidamente disputado pelos menos abastados, que facilmente lhe farão os reparos necessários e o tornarão novamente útil, e para alguns, até mesmo um luxo. Nesse ambiente, falar em material de segunda mão, para algumas pessoas soa quase como blasfêmia.
Então, quando eu digo que consigo montar toda a mastreação e estaiamento de um 30 pés com R$5000, um jogo de velas com R$3000, um motor de centro a diesel com R$4500, eletrônicos com R$2500, parece mesmo que estou falando besteira... Afinal esses itens novos custam em média 4 vezes o valor que eu mencionei.
Some a isso os R$10.000 que me custou o casco de aço (obviamente sem a mão-de-obra), e verá que não é absurdo eu calcular que ponho-o na água com no máximo R$30.000. Aí vem alguns e dizem: “você é louco de colocar sua vida em cima de materiais usados”, no entanto eu não pareceria louco se comprasse um barco equivalente, com 20 anos ou mais de uso, pelo dobro desse valor. Essa é a minha conta: Quem não pode comprar um barco novo, compra um usado pela metade do preço... Eu, como não posso com nenhum dos dois, vou fabricar um usado, pela metade do seu preço.
5) Qualquer um pode fazer? Se em vez de construir você comprasse um veleiro igual, já pronto, custaria quanto mais?
Qualquer um pode fazer. Aliás, minha filosofia é a de que qualquer um pode qualquer coisa... Como dizia Raul Seixas: “basta ser sincero e desejar profundo”.
No início da minha pesquisa, quando ainda estava coletando informações, encontrei muito desestímulo; todo mundo dizia que se eu não posso comprar um barco, nem adianta querer construí-lo... Leia-se: “não é para o meu bico”. Como eu sou muito teimoso, e tenho dificuldade em acatar até mesmo algumas chamadas “leis naturais”, não seria uma regra ditada por não sei quem que teria o poder de me segurar.
E mais, como imagino que haja por aí muitos como eu, sonhando em um dia poder possuir um veleiro, e quem sabe, singrar os mares, decidi abrir o caminho, provar com fatos que essa regra está errada, e depois divulgar o resultado, incentivando o máximo de pessoas que queiram se aventurar a fazer o mesmo; daí surgiu a idéia de escrever um livro, do tipo “manual faça você mesmo”, no qual incluirei o projeto completo do barco, instruções detalhadas com fotos da montagem e as dicas de soluções alternativas que vou descobrindo ao longo da empreitada, à medida que os problemas vão se apresentando.
6) Foi tudo pelo método “feito por mim mesmo” ou em algum momento você recebeu a ajuda de alguém?
Até o momento, trabalhei sozinho; exceto pelo projeto, que é produto da evolução de desenhos disponíveis na internet, e pela ajuda teórica recebida em um ou outro fórum ou grupo de discussões. Existe um oceano de informação disponível a quem estiver disposto a procurar... Mas é preciso peneirar bastante, pois também tem muito lixo na rede.
7) Qual foi a reação de seus vizinhos, ao ver um barco crescendo na calçada?
Teve todo tipo de reação; na maioria das vezes curiosidade. Quando ainda estava no cavername, as pessoas que passavam perguntavam se seria árvore de natal, luminoso de propaganda da Shell, carro alegórico; teve até quem pensasse que seria uma “estação tubo” de ônibus, dessas comuns aqui em Curitiba. Depois de revestido com chapa, mas ainda com a quilha para cima, várias pessoas me perguntavam se era um submarino – nesse caso devo reconhecer que parecia mesmo – ocasião em que eu respondia: “passou perto; ele vai para o mar, mas, se Deus quiser, não tão fundo!”
Mas, o que mais me chamou a atenção, foi notar as pessoas se identificando com o sonho... Ou o que elas acreditavam ser o meu sonho. Parece que todos temos isso em comum, lá no fundo, bem no subconsciente: o sonho de liberdade; o desejo de um dia romper as amarras, de ultrapassar as fronteiras, de descobrir o que há depois da linha do horizonte. E o triste é perceber as pessoas se escravizando deliberadamente... Recusando-se a lutar em defesa de uma realidade melhor; conheci várias pessoas pela internet, e algumas pessoalmente, que nutrem esse sonho de construir um barco; pessoas que já compraram um projeto, outras que já adquiriram vários projetos, mas que nunca iniciam a construção... Tenho a impressão que elas inconscientemente se apegam ao sonho, e aí não conseguem deixá-lo; e para viver a realidade é preciso parar de sonhar.
Acabei concluindo que as pessoas mantém seus sonhos para poderem, de vez em quando fugir da realidade desse sistema ao qual se escravizaram. Quando param para conversar comigo, apreciar meu trabalho, naqueles poucos minutos elas viajam na imaginação... Depois, voltam a pôr os pés no chão e retornam à sua rotina. Ao se despedirem me dizem: “parabéns, continue firme com seu sonho”, sem perceber que estão dizendo isso a si mesmos, e não a mim.
Um dia eu tive um sonho... Mas no momento seguinte acordei. De lá para cá vivi a realidade da busca pela capacidade de um dia realizar esse sonho. Hoje vivo a realidade de soldar uma chapa de cada vez até colocar o barco na água... E está muito próximo o dia em que viverei a realidade de desbravar o mar em busca da minha próxima ilha. Não há mais o sonho; no lugar dele nasceu um novo projeto de vida.
8) O momento da virada do casco costuma ser complicado, envolvendo guindaste, grua etc., com seus respectivos custos. Como você fez para vencer essa etapa, se virou sozinho também?
Todos os relatos de construção amadora que li mencionam isso. A virada do casco é quase sempre uma ocasião especial, um evento à parte; implicam em um alto nível de stress de quem está construindo, tanto pelo esforço e custo envolvidos como pelo risco de algum dano ao casco, com a respectiva perda de todo um trabalho.
Como desde o início do projeto eu venho buscando a maneira mais barata possível de realizá-lo, essa foi uma ótima oportunidade para praticar. Imaginei uma estrutura em forma de cubo, com 3,50m de largura por 3,50m de comprimento e 3,50m de altura com o casco suspenso no meio. Nos cantos superiores instalei 4 roldanas por onde passei dois cabos de aço de 8mm, um pela proa e outro pela popa. Feito isso só precisaria fazer o barco girar em seu eixo imaginário. É claro que tive que calcular cuidadosamente o comprimento dos cabos, de modo que ao virar, o barco ficasse com a quilha na altura certa, pronto para apoiar-se nos cavaletes que seriam então sob ele colocados.
A idéia em si funcionou muito bem. Suspendi o casco usando o macaco do meu carro, calcei em pontos específicos com paralelepípedos, enquanto passava os cabos ao redor... E depois girei o conjunto de 1,6T com as mãos, exatamente como havia imaginado que o faria. O único senão foi que construí a estrutura de madeira, e dimensionei mal o material; resultado: com 75% da virada realizada, houve um estouro, e o barco arriou ali, na posição em que se encontrava. A tensão foi tanta, que teve viga que se partiu em três pontos diferentes. Tive muita sorte de não me machucar, e de não provocar nenhum dano ao casco... No projeto vou especificar vigas de aço para essa estrutura; definitivamente este não é um risco aceitável pela economia tão pequena que gerou.
9) Qual o seu objetivo com o barco, quando ficar pronto? Vai dar uma volta ao mundo?
Como essa idéia do barco vem evoluindo comigo ao longo dos anos, o objetivo também tornou-se uma coisa muito dinâmica. No início eu pensava que queria alcançar a ilha, mas quando cheguei lá vi que tinha água do outro lado, e ilhas maiores e mais distantes; quando li numa dessas revistas, a reportagem com lindas fotos dos fiordes na costa chilena, onde não se chega de carro nem de avião, pensei comigo: “que mundo maravilhoso esse em que eu nasci; não é justo morrer sem o ter conhecido... Um pouquinho que seja”. Quando já tinha o esboço do barco na minha mente, fiz um acordo comigo mesmo, de não morrer antes de ter feito pelo menos uma travessia oceânica.
Hoje vivo com uma mulher que divide comigo esses anseios, e com quem pretendo viver a bordo do Indomável; credito à Lenir, minha companheira, a idéia cada vez mais presente de transformar essa vida a bordo numa viagem sem datas, possivelmente em uma volta ao mundo... Mas não temos compromisso com isso, pelo menos por enquanto.
10) Você tem experiência em navegação? Fale-me sobre seu histórico de vida: profissão, idade, local de nascimento...
Nasci em São Paulo, em 02 de novembro de 1962, dia de finados; passei a vida comemorando meu aniversário enquanto ouvia as pessoas chorarem seus mortos... Talvez isso tenha feito com que eu precocemente aprendesse o valor da vida, desenvolvendo em mim um gosto especial pela aventura, e por viver intensamente cada instante como se fosse único – até porque é mesmo.
Comecei a trabalhar em serralheria ainda com meu pai, de quem herdei a habilidade de construir qualquer coisa. Aos 30 anos ouvi o chamado do mar e comecei minhas pesquisas particulares por assuntos náuticos; aos 40 tive um despertar da consciência, e passei a intensificar minha busca por verdades mais profundas da vida e do universo... O que tem me aproximado cada vez mais do mar, onde imagino que conseguirei finalmente me integrar à natureza de forma plena.
Minha experiência em navegação tem sido mais teórica que prática; estudei bastante tudo que diz respeito a barcos e ao mar; tirei habilitação de arrais amador, posteriormente mestre, e agora em abril estarei prestando exame para capitão. Na prática, além da minha desastrosa estréia na vela, naufragando um pequeno veleiro em água doce, numa tempestade com força de furacão (para mim, na ocasião um principiante, pareceu), somo algumas velejadas com os barcos que construí nas represas paulistanas, e uns poucos passeios pela costa, em Porto Belo e Florianópolis, em Santa Catarina e Ilha do Mel, no Paraná.
11) Em seu blog na internet, você se autodenomina um “saniássin”. O que vem a ser isso?
Você não vai encontrar uma definição precisa para este termo. Saniássin, conforme me refiro a mim mesmo, é um buscador insaciável das verdades superiores; Uma espécie de mestre de si mesmo, o saniássin é aquele que não aceita as verdades impostas, vive a própria experiência como caminho do conhecimento pleno. No contexto, quero dizer que não me submeto a esses paradigmas que regem a vida e as relações em geral; não reconheço termos como impossível, até que tenha comprovado pessoalmente.
12) Você fotografou cada etapa da construção? (VOCÊ TEM ALGUMASS IMAGENS EM ALTA RESSOLUÇÃO PARA ME ENVIAR, por favor?) TAMBÉM PRECISO DE UMA FOTO SUA, AO LADO DO BARCO, COMO A QUE VI NO BLOG
Em anexo.
13) Em que estágio está?
Estou cobrindo o convés; na verdade o ritmo da obra diminuiu um pouco nos últimos meses, por conta de meus estudos para a prova de capitão; mês que vem retomo com gás total.
14) Qual a sensação de ver o barco ganhar forma?
É uma sensação divina; você experimenta o ato de criar... De reproduzir parte da magia da vida... Ver um pensamento tomar forma e materializar-se. Através do barco, consegui mostrar na prática algo que tento ensinar aos meus filhos, e que já coloquei em um livro: a possibilidade de realizar um milagre por si só.
15 ) De onde você tirou o nome dele, Indomável?
A própria estória que contei já mostra um pouco essa origem. Tive que ser muito teimoso para chegar até aqui; e suponho que o serei ainda mais a cada novo desafio. Como o barco surgiu de minhas idéias, creio que empresto muito de minha personalidade a ele... Desde o início buscava um nome que denotasse essa teimosia, e creio que não haja outro que melhor expresse esse espírito de aventura e liberdade. Indomável, é como me vejo, e é como imagino meu barco... Uma extensão de mim.
1) De onde tirou a idéia de construir um barco com as próprias mãos, e ainda por cima um veleiro de aço?
Essa é uma longa estória que tem seu início em uma pescaria às margens da represa Billings, há uns 15 anos. Sentado no barranco, enquanto alimento as tilápias, fico imaginando quão privilegiado seria eu se tivesse um barquinho que me levasse às ilhotas próximas - para mim ilhas mesmo, de verdade... Calculo que poderia contar nos dedos das mãos os felizardos que se podem dar esse luxo, e mesmo sem querer, comparo sua condição à dos pobres infelizes como eu, presos aqui do lado de fora; em meus devaneios, antevejo a magia contida no ato de pisar aquele solo, reservado a tão seleto grupo. O que eu mal suspeito é que nesse momento experimento apenas os primeiros sintomas de uma febre, que no decorrer do tempo só aumentará, e da qual jamais virei a me curar.
Nesse ponto a idéia de construir um barco não passa de um embrião... Sempre soube que barco é coisa de rico; nascido em família simples da periferia, só vi alguns poucos de perto, toquei em quase nenhum, e sequer imaginei estar a bordo de um deles. Os nomes, conheço de ouvir falar: saveiro, escuna, iole, iate... Não faço a menor idéia de como deva ser cada um desses até então completos estranhos, mas que em muito breve se tornarão quase uma obcessão em minha vida.
Como neste mundo nada é absoluto, bem e mal são apenas pontos de vista... Com a pobreza vem de brinde a capacidade de superar obstáculos. Desde muito cedo aprendi a fazer com as próprias mãos tudo o que eu necessitasse, mas que não pudesse comprar. Infeliz ou felizmente essa questão do dinheiro tornou-se um paradigma em minha vida, já que eu acabei desenvolvendo em mim essa capacidade de realizar meus desejos sem a necessidade dos recursos financeiros equivalentes. Passei a classificar as coisas como no máximo, relativamente difícil... Impossível é apenas algo que ainda não foi tentado da forma adequada.
À medida que a idéia do barco toma forma em minha mente, vou devorando tudo que encontro pelo caminho que trate do assunto; preciso aprender o nome de cada barco, o nome de cada parte desses barcos, o material de que é feita cada uma dessas partes, onde consigo cada um desses materiais. Minha sede de saber a respeito desse maravilhoso mundo é cada vez maior. Reviro bancas de revistas e sebos atrás de revistas e livros náuticos, começo a me familiarizar com termos, linhas e formas, leio relatos que ampliam meus horizontes, e tudo parece ter uma verdade subliminar embutida, um sinal vindo como que do além; a primeira revista náutica que leio, usada e meio antiga, fala do primeiro brasileiro a fazer a circunavegação em solitário, e de como ele construiu seu veleiro no quintal de casa; o primeiro livro que leio, igualmente usado, fala de um brasileiro que atravessou o Atlântico sul a remo... Foram meus primeiros ídolos do meio náutico... Mas, foram apenas os primeiros, de inúmeros que eu ainda viria a descobrir.
Nomes que eu nunca ouvira antes, passaram a me soar familiares tais como Slocum, Moitessier, Tabarly, Blake, Dumas, Bardiaux... Os nomes de brasileiros acho mais prudente não citar, a fim de não arranhar vaidades. No entanto, cabe aqui uma exceção: o único com quem cheguei posteriormente a me corresponder, e desenvolver o que me atrevo a chamar de amizade apesar de não o ter conhecido pessoalmente, por enquanto, o que não o impediu de me dar valiosos conselhos, e me repassar preciosas lições. Uma delas – talvez a mais cara – a de que todos esses meus ídolos são ou foram, na verdade, de carne e ossos como eu, e se eles têm algo de excepcional, talvez seja apenas sua vontade e determinação; assim, seja o que for que eles puderam, eu posso também, bastando para isso querer... Pela lição de humildade, meu respeito e gratidão a esse grande capitão que já está em sua segunda volta ao mundo com o veleiro Guardian, meu amigo, ou como ele prefere, “mano” João Sombra.
Após 10 anos, aprendendo tudo que podia, praticando minhas habilidades manuais em barcos menores já construí dois pequenos veleiros, o primeiro, experimental, feito com madeirit desses de construção civil, impregnado com resina e reforçado com fibra, me serviu para confirmar a funcionalidade dos meus desenhos; o segundo, aperfeiçoado, foi construído com lambris de madeira, desses usados em forro de teto; envernizado, ficou lindo! Pena que não fiz nenhuma foto dele que foi minha obra-prima.
Hoje as ilhas da Billings e Guarapiranga já foram devidamente exploradas, são passado... Até “furacão” de 50/60 nós eu já peguei na represa Jurumirim, em Avaré – SP, desses de estourar vela e arrancar mastro... Mas quanto mais a gente sobe, mais longe fica o horizonte... Não tem jeito, eu preciso avançar. As dezenas de livros que li, e as mais de 300 revistas que colecionei nesse tempo, mudaram as ilhas dos meus sonhos; hoje sonho com Trindade, Noronha, São Pedro... 3 Km de água doce não são mais uma travessia; hoje sonho em ver de perto os fiordes da costa chilena... Atravessar o Horn para poder colocar uma argola de ouro na orelha esquerda; o pequeno veleirinho de madeira não é mais desafio... Quero fazer um barco que mereça ser entregue em batismo à proteção de Poseidon... A bordo do qual eu possa oferecer um sacrifício pelo bordo certo para que não seja confundido com lixo, a fim de obter o consentimento de Netuno para passear por seu reino... Sob cujo mastro possa colocar uma moeda de 1 ore norueguês, simbolizando o valor dos ventos com que Éolo me há de brindar.
Eis a origem e a gênese do sonho. Daí saiu a idéia de construir com as próprias mãos o veleiro que tem sido a obra, e que será o palco da aventura de minha vida. Escorpiniano que sou, meu elemento é a terra... Nem mesmo entendo esse fascínio que a água exerce sobre mim... Sei que sou apaixonado e me entrego de corpo e alma a essa paixão... Mas sou também inteligente, cauteloso e exigente no que se refere à minha segurança, e faço questão que a aventura perdure, daí a necessidade de ser um barco sólido e seguro... Firme e forte como aço.
No início, a idéia era construir o barco em compensado naval, e revesti-lo com fibra de vidro e resina; na verdade, eu queria o método mais barato possível; ocorreu que na hora de fazer a planilha de custos, verifiquei que teria um gasto considerável com o revestimento, e resolvi calcular também em aço... E achei um custo só um pouco maior que o original (R$1000,00 para ser preciso); como nesse caso eu gastaria bem menos tempo na construção, e teria a possibilidade de dispensar a necessidade do barracão, acabou ficando mais barato... E de quebra eu teria praticamente um blindado para minha aventura.
É claro que o fato de eu trabalhar como serralheiro há 25 anos e entender de cálculo estrutural ajuda, mas até nisso pode estar a mão do destino me dando um empurrão mesmo antes de eu imaginar o que me aguardava... Seja o que Deus quiser!
2) Qual é o tamanho do veleiro? Como é a sua divisão interna?
O barco tem 8,84m de comprimento (29 pés), 3,00m de boca máxima, 1,12m de calado, e pesará vazio 3.200 Kg. O Layout interno segue o padrão adotado pelos multichines desta faixa, projetados pelo já consagrado Cabinho, devidamente adaptado às medidas e prioridades por mim estabelecidas: cama de casal em “V” na proa, com reservatório de água doce para 300 litros; mesa rebatível no centro, com um sofá em cada lado, sendo o de boreste conversível em beliche de solteiro, e usado também como assento de trabalho da mesa de navegação anexa à antepara do banheiro; banheiro à meia-nau por boreste, com pé direito de 1,80m, permitindo um banho em pé, com água aquecida por um sistema ligado ao escapamento do motor, banheiro este comparável aos de barcos bem maiores, e com acesso ao compartimento de popa onde estará instalado o tanque de combustível de 120 litros, e um depósito de ferramentas e peças de manutenção; cozinha em “L” à meia-nau por bombordo, com fogão em suspensão cardan, com duas bocas e forno, geladeira, e pia abastecida com água doce e salgada; acesso pela cozinha à cabine de popa, com cama de casal e espaço para guardar roupas e objetos pessoais; banco de baterias de 300AH sob o piso do salão principal; motor de centro de 22HP sob a escada de acesso da cabine; cockpitt com dois paióis independentes, isolados entre si e do interior do barco, para guarda de velas e cabos, e instalação do botijão de gás; plataforma de popa com piso a 5cm da água, permitindo o embarque mesmo sem a escadinha de acesso estar abaixada.
Foi concebido para ser o menor barco que eu pudesse construir, mas que permitisse uma travessia oceânica com um casal a bordo, segura e confortavelmente.
3) Quando começou a construção? Vai ficar pronto em quanto tempo?
Comecei a cortar a primeira peça no dia 21 de outubro de 2006; meu projeto prevê 500 horas trabalhadas só no casco (até o momento confirmadas); depois vem o acabamento interno, do qual não tenho uma estimativa precisa de tempo, mas que pretendo concluir, juntamente com a instalação dos demais equipamentos em aproximadamente um ano e meio após a pintura do casco. Cumprindo esse cronograma, minha expectativa é estar com ele na água até o final de 2009.
4) Quanto custou?
Essa é a parte delicada do negócio... Até existem pessoas que me consideram louco por acharem que estou construindo um cofre de aço para me jogar com ele no mar (ainda mais depois que, no filme Titanic, o engenheiro que projetou o navio disparou a célebre frase: “é feito de ferro, e eu posso garantir que afunda”); para essas pessoas, os termos “câmara estanque” e “flutuabilidade positiva” não dizem absolutamente nada... Apenas meneiam a cabeça e saem de fininho, em silêncio e sem movimentos bruscos, como quem diz: “gente assim, é melhor não contrariar”. Mas quando converso com pessoas entendidas no assunto, e a conversa toca nesse ponto (custo), é que fico com a impressão de que os olhares inquietos estão à procura da camisa de força, e as mãos para trás escondem seringas com sedativos...
Todos sabemos que no Brasil, o mundo náutico ainda é em geral, coisa de elite. Trata-se de um universo nobre, cercado de glamour, reservado a poucos privilegiados e excepcionalmente, um ou outro teimoso/apaixonado. A maioria dos consumidores desse meio não sabe o que é comprar um carro usado, e sequer concebe a idéia de um brexó, onde algo que parece não ter mais serventia e seria naturalmente descartado, é avidamente disputado pelos menos abastados, que facilmente lhe farão os reparos necessários e o tornarão novamente útil, e para alguns, até mesmo um luxo. Nesse ambiente, falar em material de segunda mão, para algumas pessoas soa quase como blasfêmia.
Então, quando eu digo que consigo montar toda a mastreação e estaiamento de um 30 pés com R$5000, um jogo de velas com R$3000, um motor de centro a diesel com R$4500, eletrônicos com R$2500, parece mesmo que estou falando besteira... Afinal esses itens novos custam em média 4 vezes o valor que eu mencionei.
Some a isso os R$10.000 que me custou o casco de aço (obviamente sem a mão-de-obra), e verá que não é absurdo eu calcular que ponho-o na água com no máximo R$30.000. Aí vem alguns e dizem: “você é louco de colocar sua vida em cima de materiais usados”, no entanto eu não pareceria louco se comprasse um barco equivalente, com 20 anos ou mais de uso, pelo dobro desse valor. Essa é a minha conta: Quem não pode comprar um barco novo, compra um usado pela metade do preço... Eu, como não posso com nenhum dos dois, vou fabricar um usado, pela metade do seu preço.
5) Qualquer um pode fazer? Se em vez de construir você comprasse um veleiro igual, já pronto, custaria quanto mais?
Qualquer um pode fazer. Aliás, minha filosofia é a de que qualquer um pode qualquer coisa... Como dizia Raul Seixas: “basta ser sincero e desejar profundo”.
No início da minha pesquisa, quando ainda estava coletando informações, encontrei muito desestímulo; todo mundo dizia que se eu não posso comprar um barco, nem adianta querer construí-lo... Leia-se: “não é para o meu bico”. Como eu sou muito teimoso, e tenho dificuldade em acatar até mesmo algumas chamadas “leis naturais”, não seria uma regra ditada por não sei quem que teria o poder de me segurar.
E mais, como imagino que haja por aí muitos como eu, sonhando em um dia poder possuir um veleiro, e quem sabe, singrar os mares, decidi abrir o caminho, provar com fatos que essa regra está errada, e depois divulgar o resultado, incentivando o máximo de pessoas que queiram se aventurar a fazer o mesmo; daí surgiu a idéia de escrever um livro, do tipo “manual faça você mesmo”, no qual incluirei o projeto completo do barco, instruções detalhadas com fotos da montagem e as dicas de soluções alternativas que vou descobrindo ao longo da empreitada, à medida que os problemas vão se apresentando.
6) Foi tudo pelo método “feito por mim mesmo” ou em algum momento você recebeu a ajuda de alguém?
Até o momento, trabalhei sozinho; exceto pelo projeto, que é produto da evolução de desenhos disponíveis na internet, e pela ajuda teórica recebida em um ou outro fórum ou grupo de discussões. Existe um oceano de informação disponível a quem estiver disposto a procurar... Mas é preciso peneirar bastante, pois também tem muito lixo na rede.
7) Qual foi a reação de seus vizinhos, ao ver um barco crescendo na calçada?
Teve todo tipo de reação; na maioria das vezes curiosidade. Quando ainda estava no cavername, as pessoas que passavam perguntavam se seria árvore de natal, luminoso de propaganda da Shell, carro alegórico; teve até quem pensasse que seria uma “estação tubo” de ônibus, dessas comuns aqui em Curitiba. Depois de revestido com chapa, mas ainda com a quilha para cima, várias pessoas me perguntavam se era um submarino – nesse caso devo reconhecer que parecia mesmo – ocasião em que eu respondia: “passou perto; ele vai para o mar, mas, se Deus quiser, não tão fundo!”
Mas, o que mais me chamou a atenção, foi notar as pessoas se identificando com o sonho... Ou o que elas acreditavam ser o meu sonho. Parece que todos temos isso em comum, lá no fundo, bem no subconsciente: o sonho de liberdade; o desejo de um dia romper as amarras, de ultrapassar as fronteiras, de descobrir o que há depois da linha do horizonte. E o triste é perceber as pessoas se escravizando deliberadamente... Recusando-se a lutar em defesa de uma realidade melhor; conheci várias pessoas pela internet, e algumas pessoalmente, que nutrem esse sonho de construir um barco; pessoas que já compraram um projeto, outras que já adquiriram vários projetos, mas que nunca iniciam a construção... Tenho a impressão que elas inconscientemente se apegam ao sonho, e aí não conseguem deixá-lo; e para viver a realidade é preciso parar de sonhar.
Acabei concluindo que as pessoas mantém seus sonhos para poderem, de vez em quando fugir da realidade desse sistema ao qual se escravizaram. Quando param para conversar comigo, apreciar meu trabalho, naqueles poucos minutos elas viajam na imaginação... Depois, voltam a pôr os pés no chão e retornam à sua rotina. Ao se despedirem me dizem: “parabéns, continue firme com seu sonho”, sem perceber que estão dizendo isso a si mesmos, e não a mim.
Um dia eu tive um sonho... Mas no momento seguinte acordei. De lá para cá vivi a realidade da busca pela capacidade de um dia realizar esse sonho. Hoje vivo a realidade de soldar uma chapa de cada vez até colocar o barco na água... E está muito próximo o dia em que viverei a realidade de desbravar o mar em busca da minha próxima ilha. Não há mais o sonho; no lugar dele nasceu um novo projeto de vida.
8) O momento da virada do casco costuma ser complicado, envolvendo guindaste, grua etc., com seus respectivos custos. Como você fez para vencer essa etapa, se virou sozinho também?
Todos os relatos de construção amadora que li mencionam isso. A virada do casco é quase sempre uma ocasião especial, um evento à parte; implicam em um alto nível de stress de quem está construindo, tanto pelo esforço e custo envolvidos como pelo risco de algum dano ao casco, com a respectiva perda de todo um trabalho.
Como desde o início do projeto eu venho buscando a maneira mais barata possível de realizá-lo, essa foi uma ótima oportunidade para praticar. Imaginei uma estrutura em forma de cubo, com 3,50m de largura por 3,50m de comprimento e 3,50m de altura com o casco suspenso no meio. Nos cantos superiores instalei 4 roldanas por onde passei dois cabos de aço de 8mm, um pela proa e outro pela popa. Feito isso só precisaria fazer o barco girar em seu eixo imaginário. É claro que tive que calcular cuidadosamente o comprimento dos cabos, de modo que ao virar, o barco ficasse com a quilha na altura certa, pronto para apoiar-se nos cavaletes que seriam então sob ele colocados.
A idéia em si funcionou muito bem. Suspendi o casco usando o macaco do meu carro, calcei em pontos específicos com paralelepípedos, enquanto passava os cabos ao redor... E depois girei o conjunto de 1,6T com as mãos, exatamente como havia imaginado que o faria. O único senão foi que construí a estrutura de madeira, e dimensionei mal o material; resultado: com 75% da virada realizada, houve um estouro, e o barco arriou ali, na posição em que se encontrava. A tensão foi tanta, que teve viga que se partiu em três pontos diferentes. Tive muita sorte de não me machucar, e de não provocar nenhum dano ao casco... No projeto vou especificar vigas de aço para essa estrutura; definitivamente este não é um risco aceitável pela economia tão pequena que gerou.
9) Qual o seu objetivo com o barco, quando ficar pronto? Vai dar uma volta ao mundo?
Como essa idéia do barco vem evoluindo comigo ao longo dos anos, o objetivo também tornou-se uma coisa muito dinâmica. No início eu pensava que queria alcançar a ilha, mas quando cheguei lá vi que tinha água do outro lado, e ilhas maiores e mais distantes; quando li numa dessas revistas, a reportagem com lindas fotos dos fiordes na costa chilena, onde não se chega de carro nem de avião, pensei comigo: “que mundo maravilhoso esse em que eu nasci; não é justo morrer sem o ter conhecido... Um pouquinho que seja”. Quando já tinha o esboço do barco na minha mente, fiz um acordo comigo mesmo, de não morrer antes de ter feito pelo menos uma travessia oceânica.
Hoje vivo com uma mulher que divide comigo esses anseios, e com quem pretendo viver a bordo do Indomável; credito à Lenir, minha companheira, a idéia cada vez mais presente de transformar essa vida a bordo numa viagem sem datas, possivelmente em uma volta ao mundo... Mas não temos compromisso com isso, pelo menos por enquanto.
10) Você tem experiência em navegação? Fale-me sobre seu histórico de vida: profissão, idade, local de nascimento...
Nasci em São Paulo, em 02 de novembro de 1962, dia de finados; passei a vida comemorando meu aniversário enquanto ouvia as pessoas chorarem seus mortos... Talvez isso tenha feito com que eu precocemente aprendesse o valor da vida, desenvolvendo em mim um gosto especial pela aventura, e por viver intensamente cada instante como se fosse único – até porque é mesmo.
Comecei a trabalhar em serralheria ainda com meu pai, de quem herdei a habilidade de construir qualquer coisa. Aos 30 anos ouvi o chamado do mar e comecei minhas pesquisas particulares por assuntos náuticos; aos 40 tive um despertar da consciência, e passei a intensificar minha busca por verdades mais profundas da vida e do universo... O que tem me aproximado cada vez mais do mar, onde imagino que conseguirei finalmente me integrar à natureza de forma plena.
Minha experiência em navegação tem sido mais teórica que prática; estudei bastante tudo que diz respeito a barcos e ao mar; tirei habilitação de arrais amador, posteriormente mestre, e agora em abril estarei prestando exame para capitão. Na prática, além da minha desastrosa estréia na vela, naufragando um pequeno veleiro em água doce, numa tempestade com força de furacão (para mim, na ocasião um principiante, pareceu), somo algumas velejadas com os barcos que construí nas represas paulistanas, e uns poucos passeios pela costa, em Porto Belo e Florianópolis, em Santa Catarina e Ilha do Mel, no Paraná.
11) Em seu blog na internet, você se autodenomina um “saniássin”. O que vem a ser isso?
Você não vai encontrar uma definição precisa para este termo. Saniássin, conforme me refiro a mim mesmo, é um buscador insaciável das verdades superiores; Uma espécie de mestre de si mesmo, o saniássin é aquele que não aceita as verdades impostas, vive a própria experiência como caminho do conhecimento pleno. No contexto, quero dizer que não me submeto a esses paradigmas que regem a vida e as relações em geral; não reconheço termos como impossível, até que tenha comprovado pessoalmente.
12) Você fotografou cada etapa da construção? (VOCÊ TEM ALGUMASS IMAGENS EM ALTA RESSOLUÇÃO PARA ME ENVIAR, por favor?) TAMBÉM PRECISO DE UMA FOTO SUA, AO LADO DO BARCO, COMO A QUE VI NO BLOG
Em anexo.
13) Em que estágio está?
Estou cobrindo o convés; na verdade o ritmo da obra diminuiu um pouco nos últimos meses, por conta de meus estudos para a prova de capitão; mês que vem retomo com gás total.
14) Qual a sensação de ver o barco ganhar forma?
É uma sensação divina; você experimenta o ato de criar... De reproduzir parte da magia da vida... Ver um pensamento tomar forma e materializar-se. Através do barco, consegui mostrar na prática algo que tento ensinar aos meus filhos, e que já coloquei em um livro: a possibilidade de realizar um milagre por si só.
15 ) De onde você tirou o nome dele, Indomável?
A própria estória que contei já mostra um pouco essa origem. Tive que ser muito teimoso para chegar até aqui; e suponho que o serei ainda mais a cada novo desafio. Como o barco surgiu de minhas idéias, creio que empresto muito de minha personalidade a ele... Desde o início buscava um nome que denotasse essa teimosia, e creio que não haja outro que melhor expresse esse espírito de aventura e liberdade. Indomável, é como me vejo, e é como imagino meu barco... Uma extensão de mim.